Lá pelos idos de 1955, portanto há mais de cinqüenta anos atrás, se
iniciaram, de forma organizada, os torneios de canto de pássaros nativos
no Brasil. Mais precisamente nas cidades de Barretos SP, Franca SP,
Ribeirão Preto SP e Uberaba MG. Cidades próximas uma das outras com
possibilidade para viajar por razoáveis estradas de terra ou de
ferrovia, carregávamos os pássaros no colo por causa dos solavancos e
dos buracos nas pistas.
Nessas localidades havia inúmeros
mantenedores de aves silvestres, notadamente bicudos e com curiós em
segundo plano. Outros pássaros nem eram considerados e a ênfase e os
torneios se restringiam apenas às espécies citadas. Fácil de saber, nos
bicudos, através dos dialetos que emitiam de onde vinham, os "cocotil"
de Barretos, os "tulim-tulim" de Franca, os "suim-suim" de Uberaba e os
"ti-ka-ti" de Ribeirão. Num grande esforço conseguimos recuperar esses
estilos de canto e entregamos aos respectivos prefeitos para arquivo no
museu histórico das cidades para que ficassem preservados para sempre as
cantorias dos bicudos dali.
Os curiós, embora menos cultivados,
também tinham a marca e a vocalização de sua origem. Cada cidade
cultivava o seu canto e as trocas ou vendas, para fora, eram mínimas,
até um certo bairrismo predominava o que ajudava diminuir as transações.
O interessante é que não se admitia pássaros com outro tipo de dialeto,
não se tinha o menor interesse. Todos os indivíduos eram conhecidos e
ficava difícil aparecer outros diferentes daqueles que se apresentavam
nos concursos.
Normalmente os participantes dos eventos não passavam
de cinqüenta nos bicudos e de 20 nos curiós, ao final dos eventos
promoviam-se festas com muito "chopps" e salgadinhos, tudo de graça.
Quase todos os expositores da época já faleceram, restam alguns poucos
para nos contar suas estórias interessantes e às vezes hilariantes.
Como
dissemos, tudo era muito bem organizado e daí houve a necessidade de se
fundarem entidades de passarinheiros como a hoje denominada Associação
dos Criadores de Pássaros de Ribeirão Preto, que serviu de modelo para
as iniciativas que vieram a seguir na montagem de novos Clubes para
depois haver a disseminação pelo Brasil.
Os passeriformes, naquele período, em sua grande maioria eram
capturados na própria região, onde existiam em abundância. Os habitat
estavam intocados. Nenhum espécime era reproduzido doméstico e nem se
queria, tudo silvestre. Impossível criar, não se sabia como, e aqueles
que sobrevivessem seriam doentes, fracos e medrosos, não prestavam para
canto e tão pouco serviam para participação em torneios. Esse era o
entendimento corrente e pretensamente verdadeiro, ninguém duvidava desse
dogma ou desse sofisma. A caça predatória se mostrava um hábito
corriqueiro e nem um pouco combatido ou contestado, embora esse ato não
fosse praticado pelo grande maioria dos passarinheiros e sim por pessoas
que se aproveitavam daquela situação para ganhar dinheiro com uma
atividade de predação. Supunha-se, no entanto, que as fontes seriam
inesgotáveis. Eram milhares de pássaros que eram sistematicamente
remetidos para as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro onde ficavam
expostos ao público e vendidos nas casas de comércio. Tudo feito às
claras e abertamente sem nenhum incômodo ou contestação da sociedade ou
das autoridades.
Preocupação com o meio ambiente? Nenhuma à época. A
agricultura diversificada e a pecuária ainda não haviam atingido o
estado de devastação da natureza que hoje impera na região das cidades
citadas, outrora habitat desses passeriformes. Os desertos verdes dos
enormes pastos de gado branco, das imensas lavouras de cana-de-açúcar e
de soja, milhares e milhares de hectares degradados ao lado de
barragens, queimadas e poluição das águas, uma lástima ecológica. Somos
obrigados a conviver nessa conjuntura e ainda aplaudir iniciativas do
gênero em nome do progresso e do desenvolvimento avassalador e
ganancioso, é preciso gerar emprego e rendas. É preciso produzir comida
para os bilhões de pessoas que existem na Terra. Como proteger o meio
ambiente debaixo dessa pressão crescente.
Dessa forma, dez anos mais
tarde, em 1967 publicou-se, finalmente a Lei de Proteção à Fauna, por
incrível que pareça, publicada pela ditadura militar e que vale até os
dias de hoje. Ficamos até espantados com a ousadia do texto, mas que já
não era sem tempo, até que enfim havia algo para regular e dar um
direcionamento nas questões que envolviam os animais silvestres
brasileiros.
Se não era perfeita foi um marco importante para a
proteção, preservação e conservação de nossa avifauna. Daí para frente
as coisas mudaram, os envolvidos tinham agora um freio: os termos da
Lei. Com a criação simultânea do IBDF, surgiu então o órgão
regulamentador com poder discricionário, nos limites da Lei, para cuidar
do meio ambiente no Brasil. Nessa época, levamos um choque, iniciou-se o
despertar para as questões ligadas à natureza, veio o esclarecimento e o
entendimento do que eram recursos naturais renováveis e que tinham
dimensões e que poderiam acabar ou se extinguir.
Fundou-se,
também em Ribeirão Preto a primeira Federação de âmbito nacional diante
da nova ordem e da necessidade que de negociar com as autoridades a
respeito da realização de torneios e da continuidade das atividades
ligadas à ornitofilia. Aí veio em 1977, a disponibilização das anilhas
abertas para cadastrar somente os bicudos que iriam participar de
torneios. Elas foram distribuídas aos participantes dos torneios sem
nenhuma regra ou controle. Como se daria a renovação??? Capturar-se-iam
novos indivíduos??? Como se daria a continuidade dos torneios, ou mesmo a
manutenção e o registro legal dos passeriformes canoros???? Na verdade,
a situação estava confusa e com falta de perspectivas a se examinar a
conjuntura que se apresentava. Além do mais, os pássaros silvestres já
não eram tão abundantes, já não se podia capturá-los com a facilidade, e
ainda por cima a caça agora estava proibida por Lei.
Essa crise
gerou novos pensamentos e mudanças de atitudes os bicudeiros pelos
motivos expostos e os curiozeiros porque pretendiam iniciar o manejo
diferente. Uma verdadeira legião de aficionados que agora se apresenta
nessa modalidade, tomou a iniciativa de pretender o ensinamento aos
filhotes do dialeto Praia Grande só aconselhável aos espécimes nascidos
domésticos. Busca-se pássaros oriundos de linhagem de repetidores e com
aptidão para aprender o rebuscado canto. Como, então, regularizar os
pássaros nativos nascidos em domesticidade e separá-los dos silvestres
dentro da legalidade e de atendimento à Lei???
Daí em diante, já nos anos 80, houve uma melhor aproximação, através da Federação
Nacional, com o IBDF que culminou, em 1988, com a publicação da
Portaria 131 e reconhecimento da criação amadorista dos passeriformes
canoros e a instituição de anilhas invioláveis como prova do respectivo
nascimento em ambientes domésticos.
Na realidade não havia nenhuma
preocupação com a obtenção de lucros com a venda de pássaros e nem se
tinha idéia da proporção que a criação doméstica atingiria dentro de
pouco tempo. Por isso, à época, não houve o enquadramento como uma
criação de cunho comercial, até porque não havia motivos para tal. O
tempo foi passando e a questão sendo mudada, novos passeriformes foram
agregados à prática de torneios, em especial os Canários da Terra, os
Coleiros, os Trinca Ferros e também os Azulões e Cardeais no sul do
Brasil. Com procriação doméstica incipiente vieram para aumentar o
número de aficionados para milhões neste Brasil. O nível de complexidade
do segmento ornitofílico atingiu, então, proporções grandiosas.
É
certo, muitos equívocos foram cometidos tanto por parte de alguns
dirigentes de entidades como por parte das autoridades que não
fiscalizaram e não controlaram as atividades inerentes à classe. Não
havia qualquer tipo de estrutura para tanto. Daí a ação dos oportunistas
e a sensação de impunidade que se estabeleceu. Hoje a disseminação de
Clubes pelo Brasil é enorme, vejam por exemplo as sedes da SAC em
Florianópolis SC, a da ACCPP em Pirassununga SP e da ACPB em Brasília
que são modelos a serem seguidos pelos demais.
Podemos afirmar também
que a quantidade de grandes criadouros de pássaros está cada vez mais
aumentado e isso nos traz a certeza que a atividade deu certo e que para
o sucesso da empreita tem que haver transparência e parcerias. Não há
como e nem jeito de obstruir essa forte tendência. Hoje dominamos as
técnicas de reprodução, e a troca de experiência está trazendo a
democratização da informação.
No meio acadêmico, notamos um interesse
crescente dos alunos a respeito de formação técnica na área da
ornitocultura. Entretanto, não constatamos ainda, mostras de que há uma
preocupação da docência. Por exemplo: não encontramos nenhum registro a
respeito de modelos de projetos de criadouros e supomos que há uma certa
incompreensão pela falta de diálogo com o segmento ornitofílico. Coisa
de Brasil, se fosse em países mais desenvolvidos, estaríamos sendo
subsidiados e nossas atividades divulgadas pelo mundo inteiro. No
entanto, a evolução se mostra grandiosa, a busca da alta qualidade
genética é uma força que está estimulando muito a criação, estamos em
muitos casos até na décima geração de filhotes domésticos na cruza,
entre si, de campeões. Chega-se à conclusão que o trabalho é positivo e
que estamos no caminho certo.
Sim,
alguns ajustes precisam ser feitos, a era da informação está aí,
instrumentos como o controle, via eletrônica, Rede Mundial de
Computadores/Internet se apresenta como uma forma muito eficaz de
conseguirmos a transparência necessária que se exige para o trato com as
questões ligados ao meio ambiente.
Pois é, hoje estamos aí, com enormes planteis de nascidos domésticos à disposição
da sociedade e do poder público para eventuais planos de manejo
oficiais no sentido de possibilitar a reintrodução em áreas monitoradas,
sejam onde forem. Estamos à disposição para cumprir a nossa parte na
questão: oferecer as espécimes necessárias, na quantidade estabelecida
nos respectivos projetos. É a evidência do sucesso, o ciclo se completa,
um exemplo para o mundo.
A par disso tudo, surgem os torneios
organizados pela COBRAP desde o ano de 2003, realizados nos grandes
centros e que tem atraído expositores de várias regiões do Brasil num
congraçamento mensal de grande efeito para a união da classe. São
realizados nos meses de agosto até dezembro.
Vemos que o modelo
inicial, lá dos anos 50, persiste e que conseguimos encontrar a saída
para haver a sobrevivência da prática de torneios, assegurada pela
reprodução doméstica em larga escala, gerando emprego, rendas, vidas e
sobretudo a conservação de nossos queridos pássaros nativos brasileiros,
passado meio século.
Texto atualizado em Jun/2010